
Não tive uma boa relação com meu pai. Não que nos déssemos mal ou brigássemos, nós apenas não convivemos o suficiente.
Se separaram, ele e minha mãe, quando eu tinha 9 anos e essa foi definitiva, pois antes, já havia sido noticiada umas 4 vezes.
Enfim, depois disso mudamos para São Paulo e, as visitas que eram de 15 em 15 dias, ficaram cada vez mais esporádicas.
Eu tinha muita raiva, raiva por não ter um pai presente, por ter uma mãe que não o supria (alguma consegue?), raiva por não entender o que tinha acontecido.
Um dia crescemos, e faz parte do crescimento (pelo menos do meu) aceitar mais as pessoas e ver a realidade: todos temos problemas, pais e mães não são super-heróis perfeitos e infalíveis e meu pai fazia parte dessa realidade.
Depois que voltei para o Rio, já com 24 anos, tentei estreitar os laços e recuperar alguma, qualquer coisa com ele. Mas ele já estava tão cansado que a impressão que eu tinha é que ele meio que já tinha desistido de tentar qualquer movimento de mudança e continuava o mesmo cara meio que alheio a tudo.
Descobri muitas coisas sobre ele no pequeno espaço de tempo que compartilhamos:
Por trás da sua inteligência e consequente arrogância engraçada, debochada e irônica havia um cara que sabia que tinha perdido muita coisa na vida ou por acreditar muito no que queria ou por muito orgulho.
Perdeu 7 anos de sua juventude em uma prisão sendo torturado e humilhado por acreditar tanto em um ideal que foi capaz de pegar em armas, assaltar bancos, e participar de uma guerrilha de esquerda nos anos de chumbo. Perdeu 7 anos da vida no mesmo lugar onde hoje eu me divirto nas férias.
Perdeu o grande amor da sua vida porque não podia falar "eu te amo". Perdeu o convívio com os filhos por motivos parecidos.
Perdeu grandes empregos porque se achava muito mais inteligente que seus chefes (e realmente o era) e não conseguia engoli-los.
Queria eu ter um décimo da sua inteligência, queria eu ter um ideal tão forte a ponto de pô-lo a frente da minha própria vida, queria eu ter aprendido mais coisas com ele. Mas cada um vive com o que tem.
O que eu tenho é a lembrança de ter podido apresentá-lo a sua neta e vê-lo realmente feliz com isso, ter podido perdoá-lo antes que ele adoecesse e isso parecesse remorso, o que eu tenho é a consciência leve por ter pedido ao médico que o deixasse morrer ao invés de ficar assistindo àquele grande homem definhar aos pouquinhos, impotente em sua condição.
O que eu tenho é a lembrança de uma pessoa que teria de tudo para me deixar mal, mas me fez um bem danado quando me deixou conhecê-la e perdoá-la por algo que fez e não tinha nem noção.
Nesse dia dos pais me sinto orgulhosa do meu, onde quer que esteja.
Como ateu convicto que era, pegaria mal falar que está no céu ou qualquer coisa que o valha.
Mas a lembrança dele ficou, assim como o gosto pela matemática, o humor ácido, as preocupações sociais, o ceticismo, o olhar, a capacidade de pôr ordem na casa sem precisar bater ou gritar, a ética, a honestidade, o vício do cigarro. Isso tudo eu guardei dele.
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